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domingo, 24 de abril de 2005

Opinião de António Barreto

com a qual eu não podia concordar mais (link disponível somente para assinantes). Acho que há muitos que se revêem nestas palavras...

Deixo aqui o texto, a direcção comercial do Público que me perdoe...

Uma democrática obscenidade

António Barreto

Como é possível imaginar que um qualificado profissional, gestor ou técnico, mas politicamente independente, queira vincular a sua função, quem sabe se a sua honra e a sua dignidade, a um ministro ou um partido? Em vez de fomentar a ética de serviço público, o Governo deseja encorajar a moral de obediência partidária.

Esta semana, o Governo aprovou, em segunda leitura, a proposta de lei sobre os cargos dirigentes da Administração Pública. O texto definitivo ainda não foi distribuído, mas já se conhecem as linhas gerais. Além de uns dispositivos herméticos e pouco operantes sobre as avaliações, as cartas de missão e os processos de realização de concursos, o essencial diz respeito aos cargos de chefia. Os cargos intermédios (director de serviços, por exemplo) passarão a ser preenchidos por via de concurso, não se conhecendo ainda as respectivas modalidades. Mas também é verdade que, se não forem tomadas medidas revolucionárias, estes concursos pertencem geralmente à categoria de "concursos com fotografia". Toda a gente sabe o que são. Quando se deseja recrutar alguém de concreto, desenha-se um perfil coincidente com a pessoa em causa, arranjam-se umas cláusulas que eliminam os inocentes eventualmente parecidos com o escolhido e abre-se, com lealdade, transparência, isenção e rigor, o concurso a toda a gente. Passados os prazos legais, há quatro hipóteses a considerar. Primeira: aquele foi, por acaso, o único candidato ou a única pessoa a preencher os requisitos da "grelha" e os termos de referência. Caso arrumado. Segunda: há dezenas ou centenas de candidatos, mas, após várias provas de eliminação sucessiva, sobra meia dúzia e, por acaso, entre os melhores, aquele candidato de que falávamos acima reúne condições e méritos excepcionais e é seleccionado. Terceira: entre os candidatos não previstos surge um especialmente qualificado, melhor do que o candidato da fotografia, mas é penalizado por uma questão de processo, pelo que o candidato do perfil é seleccionado, apesar de, por sorte e por acaso, ter ficado em segundo lugar nas provas de mérito. Quarta: entre os candidatos inesperados há melhor do que o da fotografia e acaba por ser seleccionado. Acrescento que esta última hipótese, a de ganhar quem não estava previsto, quase nunca acontece. Se assim ocorre, abre-se outro concurso para o que perdeu.

Quanto aos verdadeiros cargos de chefia, directores-gerais, subdirectores-gerais, presidentes e vice-presidentes de institutos, o regime será diferente. Num gesto inédito, o Governo decidiu legalizar e consolidar a prática que vinha sendo corrida há muitos anos e que consiste em dar aos ministros a competência para, de acordo com critérios de pura confiança política e partidária, nomear esses responsáveis. Em certo sentido, o Governo agravou tudo, pois que, até agora, se tratava de um costume e que era necessário tratar do problema com cuidado, além de que o seu autor ficava exposto à oposição parlamentar e à opinião pública. A partir de agora, a lei, segundo os comunicados oficiais, é taxativa: os cargos da alta Administração Pública caem com as eleições e os novos governos. Passa a ser uma regra. Os comunicados, aliás, diziam: "caem" ou "cessam automaticamente". Acrescente-se que os directores gerais de confiança política e partidária serão também os garantes de que os concursos para as chefias intermédias, por eles organizados, se farão com fotografia e a infalível "grelha de análise".Guterres já tinha, em tempos, criado os concursos para directores de serviços. Mas só o fez depois de ter nomeado, ao longo de vários anos, todos os milhares que era necessário nomear. O PSD de Barroso e Santana quis nomear os directores de serviço e mudou o sistema. Vem agora o PS de Sócrates mostrar o seu heroísmo e dar, com uma mão, os concursos para aquelas categorias. Mas, com a outra, cria um sistema muito mais duro e favorável aos seus amigos de partido.

Na verdade, a coberto da "confiança política", estamos diante de uma pura obscenidade democrática. São muitas centenas, certamente mais de um milhar de altos funcionários, que assim vêm as suas funções de técnico, administrador, gestor, cientista e dirigente transformadas em obediência partidária. É assim que se cria uma Administração Pública pletórica, infiltrada de militantes, deliberadamente arregimentada e destinada a servir intentos partidários. Qualquer técnico, gestor ou cientista que queira pôr ao serviço todos os seus talentos e dedicar-se ao serviço público, sabe a partir de agora que, por lei, está nas suas funções enquanto as eleições não derem resultados diferentes. A sua escolha depende, em primeiro lugar, da simpatia partidária. O termo da sua função fica dependente, não da sua obra, mas do resultado eleitoral do seu patrão ou partido. A politização partidária da Administração Pública, por força de lei, é um enorme passo atrás na evolução do Estado em Portugal.

O Governo está a dizer aos cidadãos que, fora dos partidos e da confiança política, não há funções responsáveis de serviço público isento. Qualquer cidadão tem o pleno direito (e, se for inteligente, a obrigação...) de desconfiar da Administração Pública, de a saber ao serviço de um partido e de um governo, não ao serviço do Estado e de um país. Os altos funcionários passam a estar interessados nos resultados eleitorais, a estabelecer os seus calendários e as suas agendas em função das eleições e a definir as suas prioridades conforme aos interesses eleitorais, os do seu ministro e os seus. Além dos membros de gabinete, dos consultores e dos conselheiros, que podem ser dezenas e que são todos de estrita confiança política e partidária, os ministros têm agora uma corte alargada com suporte legal.Como é possível imaginar que um qualificado profissional, gestor ou técnico, mas politicamente independente, queira vincular a sua função, quem sabe se a sua honra e a sua dignidade, a um ministro ou um partido? Transformar uma pessoa, que fez da isenção ou da independência um valor, num funcionário dependente de um partido é execrável. Ora, a isenção partidária e a independência política, não sendo valores absolutos, são valores. Pelo menos tão importantes quanto o empenho militante. Só que este não pode eliminar aquele. O que se esperava de uma Administração Pública decente era que, além de estável e equilibrada, fosse um incentivo para que os seus responsáveis, mesmo quando professam simpatias políticas, pautassem o seu comportamento por uma ideia cada vez mais nítida de isenção e que fossem encorajados, a fim de melhor servir a população, a distanciar-se dos seus reflexos partidários. Em vez disso, o Governo e a lei propõem-se estimular os dirigentes da Administração Pública a afastarem-se do caminho da isenção e enveredarem pelo da confiança política. Em vez de fomentar a ética de serviço público, o Governo deseja encorajar a moral da obediência partidária.

Acrescentado ao novo regime de limitação de mandatos eleitos, este sistema reforça a blindagem partidária do Estado. É um mau passo para a República!

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João Oliveira

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