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quarta-feira, 28 de abril de 2004

Artigo de Teresa Fidelis sobre a Ria de Aveiro



Publicamos, com todo o gosto, um artigo de Teresa Fidelis, professora doutora do Departamento de Ambiente e Ordenamento da UA sobre o Gabinete da Ria, assunto ao qual voltaremos sempre que for possivel:

Era uma vez uma “Carta de Boas Intenções” para “Unir a Ria”

Teresa Fidélis

A apresentação pública do futuro Plano Inter-municipal da Ria de Aveiro, designado por “Unir@Ria”, e independentemente dos seus potenciais méritos, suscita algumas considerações do ponto de vista da clareza do planeamento territorial na envolvente à Ria e do papel dos municípios. Este breve artigo de opinião pretende ser o primeiro no âmbito de um exercício de reflexão crítica sobre o planeamento do território nesta região e incide sobre a inserção deste novo plano na actual estrutura hierárquica de planos do território e, sobre o seu real contributo para a articulação entre políticas e estratégias municipais de desenvolvimento e de protecção do ambiente, encarada como uma via fundamental para preservar e valorizar a Ria de Aveiro.

É curioso observar que a par da tão criticada e complexa multiplicidade de entidades com jurisdição sobre a Ria de Aveiro, com conhecidas sobreposições e lacunas de competências [situação que esperemos venha a ser corrigida com o novo Gabinete de Gestão Integrada da Ria de Aveiro (GGRIA)], podemos também observar a existência de uma significativa multiplicidade de figuras de planos de ordenamento do território a abranger directa ou indirectamente a Ria. Directa ou indirectamente porque, como tanto já tem sido afirmado (e tantas vezes negligenciado), a Ria é um ecossistema complexo cujo equilíbrio está dependente não só das intervenções sobre os canais e respectivas margens, mas também das intervenções nas zonas adjacentes à estrutura hidrográfica que lhe está associada e que se estende muito para além das suas margens visíveis. As intervenções sobre a delimitação e gestão das zonas urbanas, recursos e valores naturais, áreas agrícolas e florestais, estruturas ecológicas, redes de acessibilidades e de infra-estruturas ou de equipamentos, constituem âmbitos de intervenção (enquadradas ou não, em diferentes tipos de planos) que podem gerar impactes sobre a Ria e impedir a concretização de medidas para a sua preservação e qualificação, reconhecidas como importantes pelos municípios envolventes.

Presentemente, e sem pretender ser exaustiva, a Ria de Aveiro e o território adjacente estão abrangidos por um importante conjunto de planos municipais de ordenamento do território. A uma escala inferior temos diversos Planos de Pormenor associados a zonas urbanas, industriais, recreativas, desportivas, etc. e Planos de Urbanização, ambos de natureza regulamentar. O seu elevado número não permite que os refira com detalhe mas apenas que saliente que alguns, como é, por exemplo, o caso do Plano de Urbanização do Polis de Aveiro, interferem directamente sobre a Ria de Aveiro. Para além destes, existem também os Planos Directores Municipais (PDMs). Presentemente a zona da Ria está integrada em 10 PDMs (Albergaria-a-Velha, Agueda, Aveiro, Estarreja, Ilhavo, Oliveira do Bairro, Ovar, Mira, Murtosa e Vagos). Estes planos têm natureza regulamentar, abrangem a totalidade dos territórios dos municípios e visam o estabelecimento do regime do uso do solo, a articulação entre as políticas de desenvolvimento social, económico e ambiental e a sua adequada distribuição territorial, onde, a visão estratégica para acautelar acções de valorização dos recursos naturais, incluindo o potencial da Ria de Aveiro, deverá considerada. Atendendo aos seus conteúdos e à observável prática que nos revela, em geral, e infelizmente, uma abordagem quase insular no que respeita à articulação com os municípios adjacentes, um quase autismo no que respeita às expectativas dos cidadãos e uma insipiente integração da vertente ambiental, nomeadamente no que respeita à própria Ria. Face a isto, é evidente que a revisão (em alguns casos já em curso) obriga a um renovado processo de planeamento e, também, a um forte incentivo que garanta a articulação de medidas de preservação e valorização integrada da Ria de Aveiro.

Subindo na escala hierárquica de planos mas ainda de âmbito municipal, temos o Plano Inter-Municipal da Ria de Aveiro, já numa fase final de elaboração e promovido pela Associação de Municípios da Ria de Aveiro. Este plano abrange a Ria e os respectivos canais e uma área de cerca de 2 a 3 km a montante das suas margens. Ao contrário dos planos anteriormente referidos, trata-se de um plano de natureza estratégica, que, no respeito com o definido pelos PDMs, visa articular e concertar as estratégias municipais em matéria de preservação e valorização da Ria, em particular na coordenação da incidência de projectos de desenvolvimento com incidências sobre a Ria. Não se pretende, neste momento referir criticamente o processo de planeamento ou o conteúdo deste plano, mas sim o seu contributo em termos genéricos. O conjunto de projectos propostos, vai, sem dúvida, pelo menos do ponto de vista do potencial de recreio e de turismo, proporcionar uma importante mais valia. Mas o seu contributo para a reformulação das estratégias municipais de transformação do território e de qualificação ambiental é questionável.

Já a uma escala regional, devemos referir o tão esperado Plano Regional de Ordenamento do Território da Região Centro. Este plano, de natureza estratégica, tem como objectivo principal traçar as linhas orientadoras para o desenvolvimento e valorização dos recursos naturais de âmbito regional, bem como ajudar a articular os modelos de desenvolvimento territorial dos municípios abrangidos. Embora em avançado estado de elaboração, a sua adopção tem sido sucessivamente adiada, chegando-se a temer que pouco mais venha a ser do que uma montra do somatório dos PDM’s existentes. Com a escala em que é desenvolvido este plano a abordagem à Ria de Aveiro surge consequentemente minimizada pelo que a congregação de esforços por parte dos municípios abrangidos seja fundamental para garantir que este ecossistema venha a ser devidamente consignado neste plano, cuja inserção nas estratégias de desenvolvimento territorial regional deve ultrapassar a mera presença de uma pequena mancha colorida onde consequentes susceptibilidades e/ou condicionantes consequentes parecem nada implicar sobre as opções preconizadas para a envolvente.

Numa escala hierárquica superior e já da responsabilidade do nível central temos, no âmbito dos Planos Especiais de Ordenamento do Território, o Plano de Ordenamento da Orla Costeira Ovar-Marinha Grande de que incide apenas sobre a faixa litoral e o Plano de Ordenamento da Reserva Natural de S. Jacinto, ambos de natureza regulamentar e com uma natureza de intervenção técnica específica (embora com particular interesse para à Ria, não serão agora alvo de atenção detalhada). Brevemente, e atendendo à resolução do Conselho de Ministros nº 66/2001, a Zona de Protecção Especial (ZPE) associada à Ria de Aveiro será também parte integrante de um Plano Sectorial onde vão ser estabelecidas medidas que visam a articulação entre os valores ambientais e o desenvolvimento económico e social desta áreas que faz parte da Rede Natura 2000. O conteúdo deste plano é um elemento de base fundamental para a revisão dos novos PDMs que integrem a ZPE de Aveiro, com vista a uma correcta abordagem da sustentabilidade ambiental. Pena é que o Plano Inter-municipal da Ria não não possa já integrar os seus contributos.

O lugar do novo Plano Inter-Municipal da Ria de Aveiro entre a pletora de figuras de planeamento territorial com incidência sobre a Ria de Aveiro, suscita um conjunto de considerações que me parecem úteis para reflexão. Primeiro, a multiplicidade de planos de ordenamento, ainda que por vezes simplifique os processos de planeamento, subverte os princípios intrínsecos do planeamento territorial. Uma maior disponibilização e dedicação de recursos técnicos, humanos e financeiros para preparar mais planos, se por um lado pode revelar um justo reconhecimento do contributo que o planeamento dá para a resolução de problemas, pode, por outro, constitui um (subtil) adiamento da sua resolução e ocultar uma evidente falta de arrojo e vontade política para resolver os reais problemas associados ao trinómio desenvolvimento-ambiente-território. Segundo, sendo o crescimento económico, [termo frequentemente (mal) usado como sinónimo de desenvolvimento] tão interdependente da preservação e valorização dos valores ambientais, e de tão difícil concertação quando se trata de valores que perpassam fronteiras de jurisdição municipal como é o caso de Ria de Aveiro, é pouco crível que um plano quase marginal aos processos de definição de políticas e estratégias de desenvolvimento de cada um dos municípios, e sem propostas de estratégias e de projectos estruturais, capazes de mobilizar a atenção para a futura redefinição de um modelo de desenvolvimento para a região da Ria, venha a ter gerar o desejável contributo – Unir a Ria.

A criação de entidades de âmbito supra-municipal que apoie a gestão de recursos e valores inter-municipais constitui um importante veículo para a resolução de problemas, de conflitos e de articulação de planos. Não é difícil reconhecer a importância da criação de uma entidade que congregue as responsabilidades de gestão da Ria através do Gabinete de Gestão Integrada da Ria de Aveiro (GGRIA), agora criado. Também não é difícil reconhecer o valor do contributo de uma entidade, desde que suportada de legitimidade política própria, que concerte os interesses de desenvolvimento de um conjunto de municípios envolventes à Ria e tenha por base a recentemente criada “Grande Área Metropolitana de Aveiro” (GAMA), ainda que não tenha acompanhado com agrado o processo subjacente à sua criação. Ambas as entidades podem vir a desempenhar um papel importante para a preservação e requalificação da Ria de Aveiro e para a articulação consequente das diversas figuras de planeamento territorial que a abrangem. Uma estreita articulação entre elas será essencial (pena é que Mira, parte integrante do território envolvente à Ria tenha ficado fora da GAMA, dificultando assim o exercício de articulação). Independentemente destas entidades, pertencerá sempre aos municípios uma responsabilidade fundamental para a protecção da Ria. O (fácil) reconhecimento público de “boas intenções” para a Ria de Aveiro não se esgota na assinatura de uma “Carta de Princípios de Gestão Integrada da Ria de Aveiro [MARIA, UA/LIFE(EU)], na adopção de um “Plano Inter-municipal para a Ria”, ou no observar da criação de um novo organismo para a gestão deste ecossistema. Aos municípios continuará a caber um papel difícil, mas único, de serem os principais protagonistas de um processo de re-orientação dos modelos de desenvolvimento local, de definição de políticas públicas e da respectiva tradução no território e nas suas especificidades ambientais, corrigindo a sua visão paroquialista, e contrapondo-a, num quadro de globalização, de partilha de saberes, de semelhanças mas também de diferenças, com formas e fórmulas inovadoras para o desenvolvimento local e para a transformação do território coerentes com os recursos naturais envolventes.

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João Oliveira

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